Dengue - Quem está no controle?

Autora: Cecilia Nicolai

Desde o reaparecimento da dengue na década de 80, o discurso oficial associa a ocorrência da doença ao aumento da população de mosquitos, numa equação simplificada pela lógica “eliminar mosquito evita a doença”, será verdade?

Sinceramente, não conheço população mais perseguida na história do que a do Aedes aegypti.  Os mosquitos da dengue vem sendo sistematicamente eliminados da face da terra em quase todos os continentes há anos. Eles vêm resistindo, e creio que tentando nos mostrar algo que ainda recusamos a entender.

Talvez o mosquito Aedes aegypti seja tão vítima do vírus da dengue como nós, seria irônico descobrir um dia que não deveríamos tê-lo eliminado, mas isto ainda é fantasia.

O fato é que a eliminação sistemática da espécie não tem contribuído para evitar a ocorrência cíclica do aumento do número de casos, seja em cidades mais organizadas, politicamente estáveis, mais ricas ou não. 
Parece que as condições de realização do trabalho de combate ao mosquito só influenciam no espaço de tempo entre uma epidemia e outra.

Já que não encontramos um consenso na escolha da melhor intervenção, poderíamos pelo menos tentar não dizer tantas bobagens.
Alguém de vocês já experimentou ler antigas notícias de jornal sobre a ocorrência de dengue? Pois desde a criação do Google Alerta, tenho colecionado notícias, e posso afirmar que não estamos sabendo mais o que dizer, poucos prestam atenção nas contradições.

Quando o número de casos começa a aumentar as autoridades de saúde convocam a população a se engajarem na atividade de eliminar mosquitos.
Ao mesmo tempo começa um movimento da imprensa na busca de culpados, embora ultimamente a imprensa venha sendo estranhamente muito suave nesta área.

Convocam –se então "Os especialistas", que dependendo de suas empatias pelo governo adotam ou não uns discursos mais ou menos suaves, parecidos com a imprensa, no momento estamos vivendo um “love story” técnico-político sem precedentes. 

Um clássico dos “Especialistas” em tempo de paz é dizerem que as ações de controle não têm se mostrado efetivas, apesar do empenho deste ou daquele governo. Afinal o que estão dizendo? As ações estão sendo feitas e não está funcionando? Ou que não se está executando o trabalho direito?
Às vezes arriscam suas reputações tentando responder a célebre pergunta “vamos ter uma epidemia?” Ou aquela mais saia justa “já estamos numa epidemia?”.

Prefeitos e governadores tem muita dificuldade em reconhecer uma situação de epidemia. Quando estão em campanha criticam a vontade, mas as vésperas do carnaval nem tocam no assunto.

Ano passado, em setembro o Jornal O Dia publicou, ou melhor, vazou um relatório interno da Secretaria de Saúde do Município do Rio, que baseado em análise epidemiológica de um conjunto de dados previa uma aproximação de uma nova onda epidêmica na cidade.

Na época um especialista conhecido chamado para opinar,achou que a tendência da doença era de se espalhar até dezembro, mais tarde, em dezembro, sendo entrevistado pelo Jornal O Globo, disse que era pouco provável que um aumento de casos ocorresse.  O mais esquisito é que ao mesmo tempo a imprensa já estava chamando a atenção para o aumento dos casos e do número de mortes.
Acho que a vida de especialista está pior do que a dos economistas.

Outra bobagem das epidemias de dengue é o célebre comentário sobre o absurdo de termos as Unidades de Saúde lotadas de doentes durante uma epidemia, realmente um fato espantoso!
Alguém conhece um lugar que passando por uma epidemia não fique com seus serviços sobrecarregados?
Tudo bem que nestes momentos exacerba-se toda a nossa insatisfação com o “Sistema”, mas vamos manter uma certa coerência!

Outro clássico das epidemias de dengue é as autoridades alardearem que o trabalho intensificado durante a epidemia foi o responsável pela diminuição do número de casos e que agora a cidade entendeu e que tudo vai ser diferente...

Graças a Deus epidemias tem começo, meio e fim, e quando o fim chega o número de casos cai, faz sentido? Acho que sim, e cai não por causa do trabalho de combate, cai porque assim é. A fase seguinte é as autoridades anunciarem que a doença esta sob controle, como estamos vendo no Mato Grosso do Sul pós-epidemia.
 Controle de quem?  Boa pergunta…


Email: cecilia.nicolai@gmail.com, Twitter: @cecilianicolai)



Tudo Novo de Novo

As diversas mídias tem divulgado novas medidas de controle do dengue como identificação de áreas de maior risco, notificação compulsória de suspeita de dengue tipo 4 em 24 hs. e uso de "fumacê" preventivo.
A notificação de dengue é compulsória e sua investigação obrigatória em momentos não epidêmicos.  A mudança de padrão de transmissão de uma doença também deve ser comunicada imediatamente. Então  o que temos de novo em declarar a suspeita de dengue tipo 4 de notificação de 24 hs?
O Brasil conta com uma rede de vigilância de emergência de saúde pública bem estruturada e com um sistema de vigilância epidemiológica regido por normas e procedimentos padrões que já são capazes de responder a uma ocorrência como esta. Assim esta medida parece não promover nada de novo para a vigilância epidemiológica.
O uso do "fumacê" como instrumento de resposta política tem uma eficácia indiscutível, não existe um governador, prefeito ou secretário de saúde neste Brasil que não saiba disto.
A população se sente "protegida" quando os carros passam pelas ruas matando passarinhos, borboletas, alguns insetos, poluindo o ar, menos matando o Aedes aegypti o mosquito da dengue.
Temos muitos trabalhos provando a sua baixa eficácia, levamos anos tentando convencer a população do baixo custo benefício que seu uso permite, então qual a justificativa para seu uso preventivo? A única resposta que me ocorre é que seu uso pode desviar a atenção da carência de recursos humanos, mesmo nas áreas discriminadas pelo "Mapa de Risco".
Há muito se sabe da dificuldade de cumprir as diretrizes do programa por diversas razões como: insuficiência de recursos humanos, violência, diversidade cultural, características populacionais e habitacionais e outras.
Em função destas adversidades muitas iniciativas foram realizadas, algumas bem sucedidas outras nem tanto.  Mas o que é ser "bem sucedido" nesta área?  
Existem variados modelos para se identificar áreas de maior risco,  uns mais simples construídos com o conhecimento de casos e outros mais complexos, mas nenhum deles deve ser considerado definitivo. O  conhecimento acumulado, a experiência vivida em outras epidemias não deveriam ser ignoradas pois  tem um valor agregado inestimável.  Receita de bolo não funciona.
No Rio de Janeiro, o reconhecimento do valor destas iniciativas  tem sido problemático porque quando elas foram colocadas em prática a cidade  era governada por um prefeito de oposição. 
A política da "terra arrasada" foi praticada e infelizmente o que temos é um conhecimento técnico acumulado sendo sistematicamente desprezado.
O resultado desta prática é a perda de tempo trilhando caminhos já percorridos e a perda de oportunidade de fazer algo mais efetivo antes que uma nova "onda epidêmica" nos atinja.
Não existe nada de novo em se identificar áreas prioritárias de trabalho, assim como  não é vergonha nenhuma ter que eleger prioridades em função de limitação de recursos, afinal esta é a base da prática de políticas públicas. O problema é anunciar estas medidas como uma resposta inovadora e;  que a adoção delas vai nos desviar da rota de colisão em que nos encontramos para a próxima epidemia.
Este blog tem repetidamente veiculado a idéia de que epidemias de dengue são inevitáveis, o que faz do trabalho de controle do dengue uma tarefa mais desafiadora e angustiante ao mesmo tempo.
A ocorrência de epidemias de dengue está sendo regida por uma combinação probabilística do universo que rege as disputas dos vírus pelo mosquito para garantir  a propagação da espécie com nossa incapacidade de cuidar do meio em que vivemos, somado ao fato de  não colocarmos o bem estar acima de interesses políticos menores.
O momento epidêmico exige preparo da rede de assistência para o pior,  exige preparo dos dirigentes em todos os níveis de gerência para organizar adequadamente  os serviços de saúde para que possamos minimizar o impacto da perda de vidas. 
O momento exige divulgação de medidas de proteção individual, que sempre são desprezadas pelas autoridades públicas.
Uma epidemia se aproxima e espero que sejamos capazes de enfrentá-la valorizando o conhecimento acumulado em tantas outras epidemias de dengue.
Eu tinha um professor de história que costumava dizer que um dia acordaríamos com um tremendo barulho e numa imensa escuridão, este seria o dia em que o "saco" do sol estouraria por não tolerar mais tanta repetição dos fatos.
autor(a):Cecilia Nicolai





DENGUE - A CAVALARIA AINDA NÃO CHEGOU...

A falta de métodos efetivos para interromper a transmissão do dengue, como por exemplo, a existência de uma vacina, tem imputado a população em geral e aos governos em particular um preço muito alto, em vidas e em dinheiro público.

O dengue é uma doença sazonal e endêmica com períodos epidêmicos. Embora não sejam conhecidos claramente os fatores que determinam a elevação do número de casos, as epidemias vêm atingindo um número cada vez maior de cidades, com  ocorrência de casos mais graves, principalmente, entre as crianças, antes menos afetadas.

A mudança do padrão de severidade e as limitações do controle da doença vêm demandando um planejamento da área da assistência médica, não só em manejo clínico da doença, mas principalmente em gerenciamento de crise. Historicamente o dengue era uma doença que sobrecarregava a rede básica, mas em 2008,  esta tendência mudou a ponto de alterar a série histórica da proporção de casos internados na cidade do Rio de Janeiro.

Os anos que precedem os picos epidêmicos são marcados por aumento gradual  do número de casos no segundo semestre, semelhante a formação de uma onda. Uma epidemia se forma quando, ao acaso ou transportado por algum meio, um vírus epidêmico e mais agressivo emerge. As alterações dos padrões de incidência são atribuídas a um comportamento natural de uma doença viral, que não tem nenhum mecanismo de controle efetivo e não necessariamente,  a um fracasso das políticas municipais de controle do vetor. Nada pode deter a emergência de um vírus epidêmico.

Os anos que se seguem às grandes epidemias costumam cursar com diminuição acentuada do número de casos, explicado parcialmente por um esgotamento de susceptíveis e equivocadamente atribuída a um sucesso de alguma estratégia governamental colocada em prática durante a epidemia. Depois toda imprensa publica que o número de casos reduziram e todos comemoram.
A verdade é que a variação percentual do número de casos é uma medida que demonstra  o movimento da doença até a próxima onda se formar.

A propaganda do Ministério da Saúde anunciando a diminuição de 46% do número de casos no Brasil e o sucesso da estratégia “Todos Unidos Conta a Dengue” parece precipitada. A avaliação se baseia na comparação entre o número de casos ocorridos no primeiro semestre de 2008 com o mesmo período em 2009 no qual, o peso da epidemia de 2008 ocorrida no Rio é muito grande e uma redução de mais de 90% neste mesmo período influencia os números no Brasil.
Este mesmo comportamento foi observado nos anos de 2002 e 2003, o que descarta a possibilidade de se atribuir  esta diminuição à troca de governo municipal.

A pergunta que deve ser feita é: Esta diminuição do número de casos no Rio de Janeiro ou no Brasil pode ser atribuída às novas estratégias adotadas na cidade ou no país?

Tudo leva a crer que não, sem desmerecimento de qualquer iniciativa, mas no mesmo ano em que o Ministério da Saúde comemora a diminuição percentual do número de casos, a mídia regional denuncia aumento de casos no Mato Grosso do Sul, na Bahia, no Ceará e em inúmeras cidades de médio e pequeno porte, sem capacidade de influenciar os números nacionais como o Rio de Janeiro, demonstrando uma rápida capacidade de interiorização da doença.

No ano de 2009 as mídias locais reportaram aumento de transmissão até mesmo em cidades que são modelos para o Programa Nacional de Controle do Dengue (PNCD-MS), como Belo Horizonte em Minas Gerais.

A discussão sobre qual é a estratégia ideal para se eliminar o mosquito transmissor tem sido grande, muitas inovações tem surgido, porém considerando a velocidade com que a doença tem atingido os centros urbanos no Brasil, a incapacidade geral de sustentação de resultados “positivos”, e as perguntas sem respostas que temos acumulado mostra que ainda estamos distantes da solução.

O levantamento do índice de infestação larvário medido por amostragem (LIRA), com todas as suas limitações, tem o mérito de avaliar o resultado dos esforços na eliminação de mosquitos, mas não tem apresentado evidências de ter uma relação direta com o aumento do número de casos. Na cidade  do Rio de Janeiro, os anos com índices de infestação mais elevados, como o de 2005  coincidiram com as menores incidências da doença e,  os com menores índices com a epidemia de 2008.

A diminuição gradual destes índices coincidiu na prática, com a aplicação da estratégia de manejo integrado objetivando a eliminação de criadouros com maior potencial de produção de mosquitos (macrofocos). O que indica que não existe melhor estratégia, mas sim a mais adequada considerando a diversidade do espaço urbano, a região do país e nunca esquecendo que todas são limitadas.  
 
Neste cenário, as estratégias de controle mais bem sucedidas parecem ser todas aquelas que valorizam a integração das ações e o uso da inteligência epidemiológica, aplicadas tanto à rotina como durante os momentos epidêmicos, porque em se tratando de prevenção da doença, ainda estamos esperando pela “Cavalaria”.                            

(autora: Cecília Nicolai  cecilia.nicolai@gmail.com, @cecilianicolai)










EPIDEMIAS DE DENGUE – Capacidade de Resposta a Contingências em Saúde Pública

Nas epidemias de dengue como as catástrofes que assistimos recentemente em Santa Catarina, expõem toda a fragilidade de uma sociedade.

Ao mesmo tempo em que suscitam um comportamento solidário da maioria das pessoas, também permitem que mecanismos de natureza política ocasionem fatos perturbadores.

A ocorrência de epidemias num ano de eleição conseguiu intervir em assuntos técnicos e não contribuiu para solução de questões cruciais já que a contenda desagregou ações que poderiam adquirir mais força quando construídas em conjunto.

“Um caso de dengue não se torna grave porque foi mal assistido”, esta afirmativa é sempre usada nas capacitações em manejo clínico do dengue, para convencer médicos e toda a equipe de assistência, que cabe tanto aos profissionais de saúde quanto aos acompanhantes do doente conhecer, reconhecer e intervir precocemente na medida que os sinais de gravidade aparecem.

O aumento da freqüência de casos graves registrados a partir de outubro de 2007 e durante a epidemia de 2008 na cidade do Rio de Janeiro, não pode ser atribuído apenas as dificuldades de funcionamento da rede básica de saúde da cidade. 


A ocorrência de infecções secundárias devido ao aumento da força de transmissão do vírus tipo 2, numa população altamente exposta ao vírus tipo 3, permitiu que a população como um todo, mas principalmente as crianças entre 5 e 9 anos de idade, fizessem infecção seqüencial pelo vírus tipo 2, fato que é descrito em muitos artigos como potencialmente mais propenso a desenvolver formas hemorrágicas.

Nem a epidemia nem o aumento da freqüência de casos graves foram surpresa; o Ministério da Saúde desde 2004, baseado em mudanças do perfil da doença relatado por alguns estados como o do Amazonas, havia preparado manual e realizado capacitações para o atendimento pediátrico.

Nesta epidemia, a área de assistência à saúde assumiu seu papel na gestão de crise e participou ativamente na organização dos Serviços de Saúde, o que contribuiu para melhorar nossos conhecimentos e prática no manejo clínico pediátrico do dengue.

A estrutura de assistência médica pública e privada não estava muito diferente desde a última grande “tsunami” em 2002; o dengue sempre foi uma doença em que a maioria dos casos é atendida pela rede ambulatorial ou básica que a despeito de seus problemas de cobertura, sempre se mobilizou e respondeu a estes momentos, ainda que com suspensão temporária de alguns serviços.

O assunto que tomou a mídia foi a formação de longas filas para o atendimento; todo aumento de número de casos esperado ou não, vai causar um aumento no tempo médio de espera de atendimento, em qualquer lugar do mundo (vide Epidemia de Dengue em Cingapura 2005), quer nos serviços públicos ou nos privados; o que faz diferença é termos ferramentas gerenciais que minimizem o problema, e a palavra é minimizar, pois é impossível atender a todos como se a situação fosse de normalidade.

O atendimento ao dengue não exige tecnologia, exige sim, atuação humana do médico usando todas as técnicas aprendidas na cadeira de Semiologia Médica। Dr.Eric Martinez costuma falar que o tratamento deve ser “encimático - em cima do paciente”.

Qual é hoje a maior fragilidade do sistema de saúde? É justamente a falta de Recursos Humanos.
As epidemias de dengue não podem ser evitadas, pelo menos com o conhecimento e ferramentas que dispomos até o momento para enfrentar o problema; cedo ou tarde mesmo nas cidades mais organizadas elas acontecem, novamente temos que lembrar o caso de Cingapura, e mesmo não as desejando são nossa melhor oportunidade para nos prepararmos para as contingências de saúde pública.

O papel da Vigilância Epidemiológica em detectar alterações de normalidade deve ser aprimorado, pois vigilância de dengue se faz através da ocorrência de casos e não apenas baseada em índices larvários do mosquito.

Na medida em que, aumenta a exposição da população a um maior número de tipos virais circulantes, aumenta a proporção de casos graves, que vão ser graves inevitavelmente, mas que se atendidos dentro de um sistema de saúde com competência técnica e gerencial terão seus riscos de morte reduzidos sensivelmente.

Autor (a): Cecilia Nicolai – médica de saúde pública da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e gerente da Gerência de Vigilância Epidemiológica de 1992 a 2008